A arte perdida do trânsito cordial
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a arte perdida do trânsito cordial
trabalhar perto de casa é uma dádiva. pra chegar na editora onde trabalho, gasto entre quinze e vinte minutos. destes, mais da metade são percorridos em ruas residenciais tranquilas. eu só vejo a civilização - no mau sentido - entre a ponte do jockey clube e a marginal pinheiros (sp). é o suficiente para, quase todo dia, acontecerem coisas que me fazem pensar: tem alguma coisa muito errada na cabeça das pessoas.
seta. você precisa mudar de faixa, e quer comunicar isso com educação. click… tic-tac-tic-tac. mas deve haver algo de irritante em uma luz intermitente, porque quase sempre que ligo a seta, o automóvel da faixa ao lado avança e preenche o espaço, impedindo a minha entrada. já aconteceu de eu seguir por três minutos na marginal com um carro vizinho recuado na faixa ao lado, e prever vou ligar a seta e o cara vai acelerar . é batata.
homens, mulheres, jovens, idosos; diria que é uma inconveniência bastante democrática, porque é praticada por todas as idades e perfis possíveis. quando estou de bom humor, faço até uma aposta silenciosa: esse vai , esse não vai . é fácil ganhar, já que a gentileza aparece uma a cada dez, quinze vezes.
o problema é claro, surge quando estamos atrasados, ou de cabeça quente por algum motivo alheio. é nessas horas que vemos como o trânsito é um tremendo fator de stress, alimentado por uma sociedade cada vez mais egoísta e agressiva. bom, eu nunca achei certo descontarmos os nossos problemas ou frustrações nos outros. mas cansei de ver, no congestionamento, gente esbravejando no carro ao lado, iniciando o ritual psicopata do paulista estressado: buzina, avança com o carro como se fosse um aríate (aceleram desengrenados como se dissessem: vou passar por cima, hein ), muda de faixa repentinamente, freia com brusquidão. essa violência é contagiosa, e se você for prejudicado por um desses psicopatas, pode entrar no frenesi. todo mundo já passou por isso, eu inclusive, mas é bom se policiar para não entrar na música destes loucos.
falando em música, a trilha sonora do trânsito paulista é o buzinaço dos motoqueiros ( motociclistas representam outra categoria) que passam a 80 km/h nos corredores, em meio ao congestionamento. a faixa usada por eles, que na verdade não existe, é de direito divino de circulação dos motoqueiros: nem pense em mudar de faixa se você ver uma moto no corredor pelo espelho retrovisor, mesmo que esteja a 40 metros atrás. deve ser muito difícil usar o freio de uma moto, porque se nos carros um a cada dez foi gentil comigo, com os motoboys não há estatística. ou eu sou extremamente azarado.
joguem o utilitário branco na fogueira herege, interrompeu a faixa de vossa divindade
e não há acordo nem entre eles uma vez, na av. francisco morato, um motoboy menos experiente seguia no corredor em velocidade mais baixa que a média, o que levou o motoqueiro de trás a ter um acesso de ira. acelerava com a moto desengrenada, longas buzinadas… e no semáforo deu um totó no cara da frente - que obviamente, não gostou nada. começou um bate-boca no semáforo, e eu, alguns carros atrás, vendo tudo. luz verde, e a discussão continua. repentinamente, o motoqueiro nervosinho chuta a moto do novato, derrubando-o na ponte eusébio matoso
o cara caiu na minha frente, e tive de frear forte para não atropelá-lo. atrás de mim, um astra do típico paulistano estressado reagiu como todo paulistano estressado reage: primeiro fica nervosinho, dá aquela buzinada... e somente então resolve frear. claro, não dá tempo. travou as rodas e deu um totó na traseira do meu auto. depois vi que não foi nada grave, apenas uma ralada. mas querem saber maisó o cara deu ré, puxou pra esquerda, e parou do meu lado, esbravejando um monte de bobagens, de testa e buço suados. não dava pra ouvir direito, porque o vidro estava fechado. haja stress pra suar com o ar condicionado ligado.
e ele nem viu o cara tentando se levantar na minha frente. tentou dar um showzinho, saindo derrapando, mas soltou a embreagem rápido demais e o carro morreu. ele berrou fdp , abafado pelos vidros. ao ligar o carro, esqueceu de pisar na embreagem e o bicho deu aquele solavanco e morreu de novo a cena foi cômica, relembrando-a agora, mas na hora era tanta coisa acontecendo ao mesmo tempo que não consegui achar graça.
o trânsito está cravejado de espertinhos, psicopatas, ladrões, criminosos. mas é incrível como esses caras mudam quando saem da concha de lata. ficam educados, engraçadinhos, responsáveis, que coisa será que o carro é criação do coisa-ruim, e induz comportamento diabólico à pessoas de bem? ou será que a sensação de proteção e isolamento do automóvel apenas expõe os traços psicóticos que as pessoas tentam ocultar no convívio social? se for isso, então a sociedade está realmente muito doente - mas usa uma máscara de primeira.
texto perfeito, infelizmente.
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cara, eu achava o transito do brasil ruim até dirigir na cidade mexico….. pqp... aquilo é ridiculo...
todo mundo fala mal dos motoristas americanos, mas pelo menos são muito mais educados que os brasileiros....